2 de abril de 2010

postheadericon Aquela Conversa

Era outono em Roma. Eu saía sozinha de um jazz bar logo após o fim do show e perambulava ao léu pela cidade que sempre me aguça as emoções, sem querer voltar para o hotel na véspera da minha despedida, já com os olhos úmidos. Peguei o metrô, desci no coliseu e lá me sentei para observar os jovens romanos fazendo a algazarra de sempre naquela viela toda colorida, enquanto uns poucos turistas tiravam fotos do monumento.
Enquanto a meia-noite me chegava implacável, fui até a viela e entrei em um bar, pedindo uma cerveja. Todas as mesas estavam ocupadas, e na mais próxima de mim sentava sozinho um rapaz que parecia ter uns 27 anos. Era moreno, o cabelo encaracolado e curto, bem preto, a testa larga, o nariz afinado, a boca fina e vermelha, as sombrancelhas grossas. Era bonito, e tinha feições atípicas para ser italiano, me pareceu ser egípcio. Uni a curiosidade ao cansaço das pernas e me aproximei, perguntando se poderia me sentar. Ele não entendeu, repeti com um pouco mais de calma, e ele me sorriu e disse que sim. Quando perguntei, me disse que era do Cairo e eu contive a vontade de gritar "eu sabia!" para não o assustar. Logo percebi que seu italiano não era muito bom, ele pecava ao conjugar os verbos e se enrolava perdendo as palavras, mas com carinho e vontade conseguíamos nos entender.
Após nos apresentarmos e dividirmos idades, profissões, origens, e outras coisas comuns, não contive minha curiosidade e passei a lhe perguntar tudo que me vinha à mente sobre o Cairo. Eis que tivemos uma conversa da qual nunca me esquecerei e que me volta à memória com frequência trazendo novas percepções e reflexões, como voltou esses dias em um papo com uma amiga que também se emocionou ao ouví-la, o que me fez vir aqui hoje escrever.
Ele me contou que estava em Roma a dois anos e meio, veio para trabalhar como cozinheiro em um restaurante árabe de um conhecido da família. Morava a menos de cinco minutos a pé do restaurante, e passou quase o primeiro ano inteiro se limitando a ir de casa ao restaurante ou ao mercado, e conversava somente com seus companheiros de trabalho, sempre em árabe e durante a jornada. Esporadicamente caminhava um pouco pelo seu bairro para espairecer, introspecto e tímido por não falar a língua e não saber nada sobre aquele povo nem sobre como se portar naquele mundo tão velho e, para ele, tão novo. Aos poucos, a curiosidade e o tédio foram vencendo a timidez, e ele começou a aproveitar os dias de folga para andar mais longe. E a bela Roma que impressiona e surpreende tantos com suas ruas estreitas e tumultuadas, sua arquitetura avassaladora, seus monumentos gigantescos, seus restos de uma civilização de milhares de anos vizinhando nossos metrôs, nem fez cócegas ao meu amigo egípcio. Essa Roma não o incomodou, o que até compreendo, afinal antes de saber falar ele já fazia castelos de areia à beira das pirâmides. A Roma que o fez pulsar é acolhedora, tocante, quente, e colorida.
Em um de seus passeios, anoitecia. E ele resolveu encarar aquele estádio gigante mais de perto e cincundá-lo, assim como eu tinha feito logo antes de conhecê-lo. Ele olhou para aquela viela colorida, viu aqueles jovens romanos fazendo a algazarra de sempre, aqueles bares todos que tinham uma bandeira bonita como enfeite, cheia de cores, parecendo um arco-íris. Se perguntando o significado dela, foi se aproximando sem perceber, sugado pela alegria que as vozes altas e um tanto cantadas propagavam. Quando atravessava as pessoas, estancou. Pensou se a mente estava se pregando uma peça, e olhou para o lado esquerdo. Abriu e fechou os olhos diversas vezes, com força, e olhou para o lado direito. Enquanto girava o corpo para olhar para trás, devagar, o sorriso foi se abrindo. Maravilhado, ele caminhava olhando para todas aquelas pessoas, que pareciam confortáveis e indirefentes àquela situação. Quando finalmente chegou até o fim da ruazinha, ele se deu conta de que em algum lugar do mundo, pelo menos, ele poderia não só abraçar um homem em público, mas também beijá-lo, como viu dois jovens fazendo há pouco. Sim, beijá-lo! E beijá-lo na boca, por minutos!
Ele me contava, reclinado na cadeira, quase sem me olhar. Me senti uma intrusa, por entrar na sua memória enquanto ele revivia esse momento tão forte, com lágrimas nos olhos. Ele me olhou, com vergonha por ter se deixado levar por sua emoção, por ter escapado daquela mesa e ter ido até alí, no lado de fora, um ano antes. Eu lhe dei um sorriso de alegria, e segurei seu braço enquanto meus olhos também aguavam. Ele se sentiu aliviado, e me contou que isso - abriu os braços, me mostrando o bar - era um sonho para ele. Ele sonhava poder demostrar seus desejos em público, sem correr o risco de ser preso ou morto um dia. Ele não sabia que fora de sua terra isso já acontecia, pensava que o mundo inteiro veria ele como um monstro, uma aberração.
Pedimos outras cervejas, para acalmar o momento emotivo que tivemos. Para o meu deleite, ele continuava a me contar sobre sua cultura, e disse que lá, as pessoas não se tocam, não demonstram carinho uma pelas outras, nem mesmo dentro de uma família. Ele não se lembra de ter abraçado ou beijado a mãe no rosto um dia. A namorada, que ele arrumou após muita pressão da família, era como uma amiga. Ele ainda tinha que beijá-la, para a menina não estranhar e acabar tendo alguma desconfiança, mas ele dizia ter medo de ir além, e como o sexo antes do casamento não é bem visto, ele ia enrolando a família com aquele namoro bobo. Perguntei como ele descobriu que era gay, e como ele ficava com homens por lá, já que não existiam os guetos. Ele explicou que é tudo pelo olhar, e que se sentia atraído, se questionava, até que um dia, ao trocar olhares curiosos com um homem mais velho, este o levou para sua casa e transaram. Depois de compreender, arrumou mais alguns namorados, todos assim, trocando olhares pelas ruas. Um dia, um desses namorados o levou para o que existe de mais próximo ao "bar gay", uma casa aparentemente abandonada, escondida nos subúrbios de Cairo. Lá dentro, tudo era escuro, e homens se reuniam em um cômodo interno, conversavam e bebiam, falando baixo para não despertar suspeitas de alguém que porventura passasse do lado de fora.
Seu telefone tocou, e ele atendeu falando um árabe bem rasgado e rápido. Eu me divertia com os sons estranhos, e ele me sorria, dizendo com o olhar que a noite seria boa. Desligou, falou que um amigo ia encontrá-lo em uma balada onde um italiano que tem paquerado também estaria, e me convidou para ir com ele. Saímos abraçados pelas ruas, eu feliz porque ele me protegia do frio, ele feliz por poder abraçar uma amiga com frio, ambos silenciosos, livres, e cheios de energia para trocar com a noite romana.





Mais um vez, deixo uma foto minha.

2 comentários:

Sara Lecter disse...

Bem, como eu estou comentando via MSN também, algumas coisas aqui soarão repetitivas.

Primeiro de tudo, sou obrigada a repetir, Ivna, você tem um talento imenso para contar histórias. Eu fiquei na ponta da cadeira, do começo ao fim. Fiquei arrepiada, fiquei torcendo, fiquei aflita... Enfim... EMOCIONADA.

Quanto a passagem em si, sim, eu tinha aquela velha noção de que os árabes simplesmente não vivem a sua (homo)sexualidade... E só agora percebo o quanto isso era idiota. Lógico que não tem como rsrsrs.

Senti a angústia dele, vibrei com a sua descoberta, e na minha mente, o tempo todo, um filme se desenhava, com uma trilha que não sei explicar, mas fazia o coração bater mais forte.

Como nos detemos por coisas bobas, às vezes. Ok, sem generalizar, como EU me detenho por coisas tolas. E vendo isso, sabendo desse garoto e imaginando milhões de outros, convivendo com o medo da morte, todos os dias, creio ter aprendido uma valiosa lição.

Ainda tenho muito o que pensar sobre isso, Ivna, mas certamente é uma coisa que vou levar para a vida toda. Já me vejo contando essa história para outras pessoas, toda empolgada! (cheia de "daís", como sempre, quando narro verbalmente ¬¬)

De tudo, pego o seu conceito final: LIVRES.

Lindo, maravilhoso... AMEI.

Carol.

Ivna Mei disse...

Não consigo nem comentar esse comentário, Carolzinha... Posso dizer, porém, que fico mais do que lisonjeada com o seu pedido de publicar minhas linhas na sua coluna. Logo você, que já me sugou para tantos mundos com seu talento.
Daí, ainda veio com suas graças todas me pegar de vez. Daí...

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